As portas do território desconhecido se abriram e ele saltou para dentro do mundo.
Vindo de longe, de tempos infinitos e retratado em faces finitas, Maciel olhava as ruas agitadas da grande metrópole. Olhava sem ser observado. Era invisível aos olhos das Pessoas consideradas distintas. Maciel
era ninguém. Era só um corpo sentado na calçada, esperando algumas moedas para a sua escassa refeição, nem sempre diária. Faltavam dentes no seu sorriso raro e sofrido. A perda dos
dentes e do emprego indicava o início da sua transformação em não-Pessoa aos olhos de uma sociedade consumida pela aparência da sonhada perfeição, no mundo da caridade sem empatia.
A ilusão da perfeição estava mascarada em saltos, batons, ternos e carros
que transitavam num ambiente cheio de conversas aos celulares e comemorações com copos cheios de chopes nas mesas dos bares. A vida perfeita era àquela, em sonhos, resumidos num happy hour com amigos. Maciel, sentado perto do happy hour, via a vida passar contando moedas para a possível próxima refeição. Perfeição era poder comer um prato de comida e beber água potável. Era o momento supremo
de um dia que seria considerado feliz. Perfeição, naquela mesa de happy hour, era “beber todas” e, no fim da noite, jogar algumas moedas para a não-Pessoa sentada perto da porta do bar. Era a perfeição espiritual e ética buscada pelas Pessoas bêbadas
e felizes. A perfeição da caridade (sem empatia) de almas que seriam abençoadas por Deus.
Maciel se levantou e olhou nos olhos de um dos rapazes que bebiam chopes, animados. O jovem o encarou como se fosse um temporal em dia de sol e praia. Chamou o garçom e pediu mais uma rodada de chope. Pediu também para baixar a lona do
bar, alegando que poderia chover. O garçom resistiu, mas vendo a insistência do freguês endinheirado, logo acatou a sua ordem em forma de pedido. As outras Pessoas não se opuseram à ordem-pedido.
Assim, as lonas foram baixadas, encobrindo o rosto magro de Maciel e a miséria da humanidade.
Maciel era apenas um temporal na felicidade daquelas Pessoas. Temporal que ansiavam por ir
embora, tão logo, sem causar estragos. Mas Maciel permanecia lá, agora sentado perto daquele rapaz e daquela gente com sorriso cheio de dentes, do lado de fora da vida vivida com dignidade. Não-Pessoa
aos olhos daquelas Pessoas tratadas umas pelas outras com significado humano. Maciel era temporal, não-humano, não-Pessoa que incomodava sem ser percebido em sua humanidade. Incomodava feito um temporal, feito
força da natureza a ser evitada. Amedrontava feito ventania que varre para longe o que se quer preservado.
O temporal permaneceu àquele lugar, ficou a atormentar e a ameaçar a felicidade
dos frequentadores do bar até ser expulso pelos seguranças do local. Maciel se deslocou para um ponto mais distante dos olhares raivosos daqueles seguranças que, diante da miséria, mascaravam suas
indigências reais em força física. Maciel foi rispidamente afastado da superficialidade de espíritos que preenchiam seus vazios existenciais em rodadas de chopes e esmolas em formas de moedas. Pessoas!
Na saída do bar, no fim da noite, o olhar do rapaz que fugia mais enfaticamente
do temporal se cruzou com o olhar de Maciel. Não era um olhar, mas uma ventania que o rapaz sentia e que arrancava aos poucos a sua máscara, trincada em formato humano. O rapaz correu daquele vento gelado. Apressou-se
a entrar no carro. Antes de sair com o veículo, jogou algumas moedas em direção a Maciel. A dignidade do dia seguinte viria jogada na calçada, numa noite quente e sem brisa. A dignidade que seria
momentaneamente alcançada, através de um prato de comida, viria jogada por alguém que buscava fugir da realidade da qual não queria fazer parte, sendo humano, não se importava tanto com temporais,
a não ser que o ameaçasse. Sendo humano, ele apenas usava o dinheiro para minimizar os efeitos de temporais, fazendo-se supostamente digno. Era como se pudesse comprar a força da natureza com dinheiro,
neste caso, com esmolas. As Pessoas fugiam do que não se parecia com Pessoas. As Pessoas fugiam de quem não se parecia com elas. Maciel era não-Pessoa. Era para ser evitado. Era para ser contido com esmolas
ou à força.
Ao entrar a madrugada, Maciel se retirou do local da constatação de sua não-humanidade.
Ao atravessar a rua, chocou-se com um carro em alta velocidade, cheio de Pessoas bêbadas. O álcool que as ditas Pessoas dignas ingeriam era parecido, em sua funcionalidade, com o álcool que Maciel buscava
para fugir da sua dura realidade. As Pessoas, muitas vezes, bebiam para fugir de suas frustrações e a não-Pessoa fugia da sua invisibilidade. As Pessoas do carro, assustadas, acharam que haviam atropelado
outra Pessoa. Desceram assustadas, transtornadas com o trágico acidente. Ao constatarem que era de Maciel o corpo estendido no chão, sem vida, manchado de vermelho, elas expressaram semblantes mais aliviados.
Não era uma Pessoa. Que alívio! Era um indigente. Apenas mais um miserável que cruzou o caminho daquela gente nos seus momentos felizes, atrapalhando o fluir da noite. Era apenas um problema que seria
resolvido, o mais breve possível. Era só mais um temporal que surgia abruptamente no céu, em um domingo de praia, numa noite de luar regada a chopes, em bares sofisticados; um temporal a ser evitado. Maciel
morreu invisível aos olhos das Pessoas, aos olhos do Estado. Foi morto pela irresponsabilidade, assassinado pela indiferença daquelas, declaradamente, “Pessoas”.
Conto publicado na revista Caxangá, V. 3, N.1, 2021, editada por Ana Luíza Drummond, Jorge de Freitas e Ranielle Menezes de Figueiredo.
Link da revista: https://revistacaxanga.files.wordpress.com/2021/07/caxanga-v3-n1.pdf
Imagem de 3centista por Pixabay