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quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Encruzilhada












Ainda que saiba meu nome,

diga-lhe que ando sem direção,

perdida em acasos.

Mesmo que cruze meu caminho,

diga-lhe que sou desviada de certezas

escritas em planos milimetricamente traçados.

Mesmo que chame pelo meu nome,

diga-lhe que meus ouvidos só ouvem o mar,

ondas que telegrafam na areia

destinos seculares em forma de poesia.

Apesar de saber meu endereço,

avise-lhe que nunca estou em casa.

Sou vento que sopra pelos quatro cantos da cidade,

sou noite solitária em ruas vazias,

ônibus sem parada,

encruzilhada.


O poema "Encruzilhada" recebeu menção honrosa no "1º Concurso de Poesia Escritora Rejane Aquino", Editora Mandacaru -Feira de Santana-BA, em agosto de 2021.

Link: https://editoramandacaru1.blogspot.com/2021/08/editora-mandacaru-divulga-resultado-do.html 

Imagem de cocoparisienne por Pixabay 


quarta-feira, 11 de agosto de 2021

“Homens Cordiais”

Cinco pedras lançadas na porta da casa azulada,

olhos apreensivos,

ninguém responde,

silêncio,

opressão.

 

Risos estridentes,

deboche,

piadas sarcásticas,

gritos ecoam em forma de xingamentos,

mentes perturbadas,

facínoras.













 

Turba intolerante,

ávida por sangue,

crenças falsas,

certezas frágeis,

construídas com mentiras.

Olhares fixos

no ódio ao suposto inimigo.

 

No espectro ameaçador que ronda a casa azulada,

as janelas fechadas,

as portas com trancas reforçadas,

paira uma atmosfera de medo,

angustiante,

o ar com cheiro de sangue.

O corpo trêmulo,

sentado no sofá,

apreensivo,

espera a multidão em fúria se dissipar.

 

Guerra ao diferente,

sufocamento a tudo que não é homogêneo,

padronizado em realidades inventadas,

crédulos em fantasias que retratam seres e mundos imaginários,

que condenam através do pecado,

aquilo que não pode ser julgado.

 

Julgamentos baseados em dogmas,

conduzidos pelos zeladores dos costumes,

que escondem as suas práticas espúrias,

apontando os seus dedos para outras faces.

Distorção de realidades,

condenação do que não é condenável,

elogios ao que seria inaceitável,

realidade invertida,

moral corrompida,

sangue nas mãos.

 

A turba espera,

 impacientemente,

o momento da desforra do ressentimento,

guardado em vidas vazias,

cujos desejos reprimidos

se esforçam para subverter a ordem do comportamento imposto pela religiosidade.

Mentes desvairadas

tornam assassinos àqueles que se autodeclaram abençoados,

em estado de graça,

desgraçados pela própria dádiva.

 

Fim do dia,

os cães raivosos se dispersam,

a vida respira aliviada,

o corpo exausto com a situação angustiante,

pega a estrada que vem adiante,

sem rumo,

fugindo da abominação prevalecente

em uma sociedade doente,

cambaleante,

apegada às histórias inventadas,

à força bruta

e à trapaça.


Poema publicado na #18 D-ARTE - Revista Eletrônica e Interativa Arte e Cultura, Londrina - PR, 2021.

Link:  https://dartelondrina.files.wordpress.com/2021/08/revista_d_arte_18-1.pdf

Imagem de Dimitris Vetsikas por Pixabay 


terça-feira, 10 de agosto de 2021

Mortos em nossa subjetividade coletiva









Sorríamos freneticamente

em um mundo inventado,

compartilhado num simples toque de teclado,

esquecido logo após o like.

 

Bebíamos

feito gente desgraçada,

com comportamentos desregrados,

pensando sermos heróis rebeldes,

lutando pela liberdade

de dizer asneiras altas horas da madrugada.

 

Fingíamos

que éramos diferentes,

especiais em relação a toda gente,

imitando os mesmos comportamentos

em quadrados fechados

que transbordavam a mediocridade

de uma vida cheia de ausências.

 

Conversávamos

em tom guturais,

gesticulávamos abruptamente

por causa de eventos banais,

saciando nosso instinto

de se sobrepor a razão.

 

Mortos em nossa subjetividade coletiva,

vivíamos nossa individualidade

agrupada sem laços de empatia,

sem saber que as conversas da madrugada

enalteciam egos limitados,

engasgados em sensações fugazes.

 

Destruídos pela nossa incapacidade

de olhar além das bordas da nossa própria realidade,

observamos a vida se esvair,

cantando, aos gritos,

 uma melodia de amor não correspondido,

esperando alcançar a felicidade

com o alívio da tensão

que o cotidiano repetitivo

impregna nos corpos de seus servos mais ativos.

 

Poema publicado na Revista Cult, na seção "Lugar de Fala", em 10 de agosto de 2021

Link:  https://revistacult.uol.com.br/home/mortos-em-nossa-subjetividade-coletiva/

Imagem de Hands off my tags! Michael Gaida por Pixabay 


terça-feira, 3 de agosto de 2021

Navio Fantasma

 












O Passado é um navio fantasma vagando em alto-mar.

 

A Tripulação:

sentimentos desgastados pelo tempo,

caveiras deterioradas pela ação do mar.

 

O Mar:

 espiral do tempo

que corrói a carcaça do navio

e sorve as almas dos tripulantes,

arremessando-as ao infinito.

 

Navio inoperante em alto-mar,

encoberto pela neblina,

sorrateiro,

seus corredores são túneis do tempo

por onde circulam os sentimentos desdenhados,

 traiçoeiros e imortalizados,

esperando uma chance

de voltar ao tempo presente.

 

Navio fantasma vagando em alto-mar,

bandeira à meia-haste,

trêmula,

sacolejada pelo vento incessante,

frio e esfoliante

que desloca a neblina para o oeste,

na longa noite erma

a fluir pelas entranhas dos seus sonhos mais profundos.

 

A Neblina:

exílio de pensamentos torturantes

que evocam cenas angustiantes,

cortina que encobre o passado

e dissimula os sentimentos que,

lentos,

esbarram nos corredores do navio,

procurando qualquer fenda

por onde possam trespassar,

açoitar os sonhos

e asfixiar a esperança

de quem remou para longe do passado.

 

Pancadaria!

Os tripulantes se digladiando

pelos corredores lúgubres do navio.

Esbórnia de desavenças,

memórias que se deslocam

através da orgia sangrenta de sentimentos.

 

medroseD!

Golpes desferidos contra o destino

que, surrado e atordoado,

esgueira-se através da neblina,

cansado e desfigurado,

espreita os pesadelos tormentosos

de quem espera ansiosa

o raiar do dia.

 

Poema publicado na revista LiteraLivre, V.5, N.25, 2021, editada por Ana Rosenrot.

Link da revista: https://drive.google.com/file/d/17S56eUIUdmuCTynuZn7cEFnihz7Kdiz6/view

Poema publicado no Blog Feminário Conexões e declamado por Marta Cortezão, em 11 de julho de 2021.

Link do Blog: https://feminarioconexoes.blogspot.com/2021/07/empoeme-se-em-poesia-navio-fantasma.html 

Link do Podcast: https://www.spreaker.com/user/13811750/poema-navio-fanstama-autoria-de-juliana-

Imagem de Bruce Bouley por Pixabay 



Participação na Enluaradas- Live-31, no Instagram, sobre o livro "Coletânea Enluaradas: Se Essa Lua Fosse Nossa", 2021, organizada por Marta Cortezão e Patrícia Cacau.

Link: https://www.instagram.com/tv/CNTK9UBqy0k/?utm_source=ig_web_copy_link

Card de divulgação feito por Marta Cortezão.



Fragmentos de Ilusões















Fragmentos de ilusões:

esperas intermitentes,

areia fina a escorrer

nas engrenagens do destino.

 

Pontuações diversas na gramática da vida.

Exclamações extasiadas,

interrogações ansiosas,

vírgulas desnecessárias

e pontos finais resignados.

 

Fragmentos de ilusões:

marcha fúnebre.

Sonhos esquecidos nos porões de castelos envelhecidos.

Vida embriagada pela lucidez da realidade.

 

Corações arraigados nas premissas excludentes da vida.

Problemas que surgem de longas hesitações.

Fascínio de contradições.

Dilemas sem soluções.

 

Fragmentos de ilusões:

vivências árduas.

Riscos desenhados pelos gestos irrefletidos.

Passos indecisos.

Desilusão!

 

Fragmentos de ilusões:

raridade irrompida na espiral do tempo.

Entusiasmo incontido.

Arrebatamento.

Solidão!

 

Poema publicado na Coletânea Enluaradas “Se Essa Lua Fosse Nossa”, organizada por Marta Cortesão e Patrícia Cacau, 2021.

Imagem de Peter H por Pixabay 



Participação na VII Tertúlia Virtual/2ª Temporada. Projeto idealizado por Marta Cortezão. Disponível no canal do YouTube "Banzeiro Conexões". Poetas convidadas: Elisa Lago, Juliana Moroni e Maria Antonieta Gonzaga Teixeira.

domingo, 1 de agosto de 2021

NORMALIDADE AINDA NÃO RESTAURADA


Caminho pela cidade de ruas vazias,

céu noturno,

a lua vigia o silêncio de vidas trancadas

em redomas de tijolos

com medo do dia seguinte.

Percorro casas abandonadas

por antigos moradores esgotados do nada,

foram embora levando os sonhos

e os pesadelos de perdas em tempos

de reinados de poderes sórdidos.

Olho para trás,

um cão perdido,

caminha devagar,

atento aos meus passos,

desejando abrigo,

receando o ataque do suposto humano inimigo.

Faço um sinal amistoso,

ele caminha e para,

ainda receoso,

prefere seguir por outra rua,

escolhendo a solidão

ao invés de apostar na sorte

de ir na direção de um humano

que poderia ser igual a tantos outros: impiedoso.

Sinto pena do animal solitário,

dentro das casas há lobos aprisionados,

desejando a liberdade,

alguns arriscam,

brincam com a morte,

desprezam os enlutados,

desafiam a sorte.

Encontro um grupo de pessoas,

bêbadas e sorridentes,

vieram de outro mundo,

paralelo ao atual presente.

Escolho outra rua,

a manhã se aproxima,

na padaria da esquina,

o cheiro de pão aquece a esperança

de uma normalidade ainda não restaurada,

de um cotidiano perdido em outra época,

onde tínhamos o futuro,

os apertos de mãos

e os sorrisos,

em um tempo em que viver era óbvio.

 

Poema publicado na revista Cultural Traços, N.3, 2021, editada por Paulo Ras.

Link da revista: https://www.yumpu.com/it/document/read/65793734/tracos-3

Foto de Josh Hild no Pexels


O Riso

O riso também revela dor,

às vezes não tem pudor,

demonstra mágoa,

esconde raivas,

provoca torpor.

 

O riso também desperta alegria,

às vezes é uma manifestação de nostalgia,

um movimento de desdém

ou uma expressão de alívio.

 

O riso é ambíguo,

multifacetado,

às vezes prelúdio de um risinho,

outras, antecipação de uma gargalhada.

O riso é universal,

ocasionalmente convencional,

por vezes, marginal.

 

O riso desliza pelas camadas sociais,

algumas vezes acomodado em caixas morais,

quase sempre, insubordinado.

O riso é palco de desavenças,

ferramenta de aduladores,

válvula de escape de hipócritas,

resquício de felicidade dos ingênuos,

linguagem da perversidade

ou água benta.

 

Poema publicado na revista Ecos da Palavra, N.6, 2021, editada por Catarina Dinis Pinto.

Link da revista: https://pt.calameo.com/read/0065822525f72c899e226

Imagem de Alexey Marcov por Pixabay 

 

SINAIS IRRECONHECÍVEIS

             

            O ônibus seguia seu trajeto diário, longo, enfadonho e planejado. Os passageiros, quase sempre, os mesmos, as mesmas faces distópicas, alternadas entre os primeiros raios de sol e o anoitecer melancólico e atordoante das grandes cidades. O barulho ensurdecedor das buzinas, dos motores e das conversas vagavam e se encontravam nas calçadas; ou se chocavam nas esquinas de cada avenida tumultuada. O semáforo acendia e apagava, oscilando os sinais de ir e vir, de seguir ou ficar, metáfora da sina humana de viver ou morrer nessa dinâmica constante que era a vida por ali. Ali era qualquer lugar. Poderia ser na esquina esquecida de uma rua qualquer, num bar cheio de vozes ansiosas para expressarem suas utopias e suas desesperanças ou na sua mente cheia de fantasias e dissociações com a realidade. Ali poderia ser onde você deixaria a sua vida se despedaçar em lugares pouco amigáveis e com pessoas esquecidas pelas disposições latentes ou iminentes de felicidade.

              Dizem que sempre que há um ritmo constante nos passos que dançamos a música da vida, algum ruído emerge da solitária espera pela novidade, em meio a tanta gente. E na mesmice daquela trajetória, cheia de passageiros mesmerizados com a falta de insolência da vida, até hoje, ninguém sabe de onde surgiu aquele rapaz aparentemente com olhos esvaziados de humanidade. Sentou-se no último banco do ônibus, quieto, olhar cabisbaixo, pernas abertas a ocupar quase dois assentos. Descansava ou parecia aprisionar os gestos mecânicos dos seus músculos, aparentemente cansados de esforços sem resultados. Seu rosto tinha traços marcados por um olhar cheio de nada, inquieto e desconfiado, à espera de algo inesperado que nunca aconteceria. De repente soltou um berro, correu pelo corredor do ônibus exaltado, olhos arregalados, cheio de angústia. Gritava para o motorista abrir a porta, ele queria descer em qualquer lugar ou em algum lugar específico. Desejava, talvez, saltar no nada e alimentar suas desilusões; ou pretendia descer em algum lugar que lhe mostrasse os entornos menos sombrios dos problemas que ele carregava.

              Gritava para o motorista parar o ônibus, aquele geringonça sem sentido que nunca chegava ao seu ponto final, porque o ponto final se repetia numa circularidade eterna. As pessoas espantadas com os berros do rapaz, saídas do seu estado de letargia diário, olhavam-no fixamente, assustadas, procurando uma explicação ou uma confirmação dos seus diagnósticos pré-determinados em relação ao sujeito, para elas, esquisito. Como ele ousava perturbar o entorpecimento daquelas pessoas? Quem era ele para quebrar a cadência contínua e constante daquela gente torturada por uma existência mecânica e subjugada pela falta de opções de ações espontâneas no contato com a vida? Quem era aquele rapaz de olhos profundos e enigmáticos que sacudia a vida sem graça daquela gente despedaçada pelo ritmo ingrato de sua servidão?

              Gritava com a cabeça para fora da janela do ônibus, as pupilas pareciam seguir trajetórias inusitadas em comparação à truculência contida dos gestos e do medo paralisante nos olhares das pessoas dentro da geringonça. O rapaz empurrava a porta na esperança de que ela se abrisse; em vão, pedia para que o motorista, impassível, parasse. Passado um tempo, o próximo ponto de parada se aproximou, até que o ônibus estacionou e o rapaz saltou precipitadamente, procurando sinais de beleza nas cinzas da vida. Correndo em direção oposta a trajetória percorrida, olhava para o alto e buscava sinais de simplicidade nas asas de uma borboleta que, nos seus delírios de felicidade, acompanhava-o, mostrando o esplendor de uma vida esquecida.

 

Conto publicado na revista Caxangá, V. 3, N.1, 2021, editada por Ana Luíza Drummond, Jorge de Freitas e Ranielle Menezes de Figueiredo.

Link da revista: https://revistacaxanga.files.wordpress.com/2021/07/caxanga-v3-n1.pdf

Imagem de MindBody por Pixabay 


NÃO-PESSOA

            

     As portas do território desconhecido se abriram e ele saltou para dentro do mundo. Vindo de longe, de tempos infinitos e retratado em faces finitas, Maciel olhava as ruas agitadas da grande metrópole. Olhava sem ser observado. Era invisível aos olhos das Pessoas consideradas distintas. Maciel era ninguém. Era só um corpo sentado na calçada, esperando algumas moedas para a sua escassa refeição, nem sempre diária. Faltavam dentes no seu sorriso raro e sofrido. A perda dos dentes e do emprego indicava o início da sua transformação em não-Pessoa aos olhos de uma sociedade consumida pela aparência da sonhada perfeição, no mundo da caridade sem empatia.

              A ilusão da perfeição estava mascarada em saltos, batons, ternos e carros que transitavam num ambiente cheio de conversas aos celulares e comemorações com copos cheios de chopes nas mesas dos bares. A vida perfeita era àquela, em sonhos, resumidos num happy hour com amigos. Maciel, sentado perto do happy hour, via a vida passar contando moedas para a possível próxima refeição. Perfeição era poder comer um prato de comida e beber água potável. Era o momento supremo de um dia que seria considerado feliz. Perfeição, naquela mesa de happy hour, era “beber todas” e, no fim da noite, jogar algumas moedas para a não-Pessoa sentada perto da porta do bar. Era a perfeição espiritual e ética buscada pelas Pessoas bêbadas e felizes. A perfeição da caridade (sem empatia) de almas que seriam abençoadas por Deus.

              Maciel se levantou e olhou nos olhos de um dos rapazes que bebiam chopes, animados. O jovem o encarou como se fosse um temporal em dia de sol e praia. Chamou o garçom e pediu mais uma rodada de chope. Pediu também para baixar a lona do bar, alegando que poderia chover. O garçom resistiu, mas vendo a insistência do freguês endinheirado, logo acatou a sua ordem em forma de pedido. As outras Pessoas não se opuseram à ordem-pedido. Assim, as lonas foram baixadas, encobrindo o rosto magro de Maciel e a miséria da humanidade.

              Maciel era apenas um temporal na felicidade daquelas Pessoas. Temporal que ansiavam por ir embora, tão logo, sem causar estragos. Mas Maciel permanecia lá, agora sentado perto daquele rapaz e daquela gente com sorriso cheio de dentes, do lado de fora da vida vivida com dignidade. Não-Pessoa aos olhos daquelas Pessoas tratadas umas pelas outras com significado humano. Maciel era temporal, não-humano, não-Pessoa que incomodava sem ser percebido em sua humanidade. Incomodava feito um temporal, feito força da natureza a ser evitada. Amedrontava feito ventania que varre para longe o que se quer preservado.

              O temporal permaneceu àquele lugar, ficou a atormentar e a ameaçar a felicidade dos frequentadores do bar até ser expulso pelos seguranças do local. Maciel se deslocou para um ponto mais distante dos olhares raivosos daqueles seguranças que, diante da miséria, mascaravam suas indigências reais em força física. Maciel foi rispidamente afastado da superficialidade de espíritos que preenchiam seus vazios existenciais em rodadas de chopes e esmolas em formas de moedas. Pessoas!

               Na saída do bar, no fim da noite, o olhar do rapaz que fugia mais enfaticamente do temporal se cruzou com o olhar de Maciel. Não era um olhar, mas uma ventania que o rapaz sentia e que arrancava aos poucos a sua máscara, trincada em formato humano. O rapaz correu daquele vento gelado. Apressou-se a entrar no carro. Antes de sair com o veículo, jogou algumas moedas em direção a Maciel. A dignidade do dia seguinte viria jogada na calçada, numa noite quente e sem brisa. A dignidade que seria momentaneamente alcançada, através de um prato de comida, viria jogada por alguém que buscava fugir da realidade da qual não queria fazer parte, sendo humano, não se importava tanto com temporais, a não ser que o ameaçasse. Sendo humano, ele apenas usava o dinheiro para minimizar os efeitos de temporais, fazendo-se supostamente digno. Era como se pudesse comprar a força da natureza com dinheiro, neste caso, com esmolas. As Pessoas fugiam do que não se parecia com Pessoas. As Pessoas fugiam de quem não se parecia com elas. Maciel era não-Pessoa. Era para ser evitado. Era para ser contido com esmolas ou à força.

              Ao entrar a madrugada, Maciel se retirou do local da constatação de sua não-humanidade. Ao atravessar a rua, chocou-se com um carro em alta velocidade, cheio de Pessoas bêbadas. O álcool que as ditas Pessoas dignas ingeriam era parecido, em sua funcionalidade, com o álcool que Maciel buscava para fugir da sua dura realidade. As Pessoas, muitas vezes, bebiam para fugir de suas frustrações e a não-Pessoa fugia da sua invisibilidade. As Pessoas do carro, assustadas, acharam que haviam atropelado outra Pessoa. Desceram assustadas, transtornadas com o trágico acidente. Ao constatarem que era de Maciel o corpo estendido no chão, sem vida, manchado de vermelho, elas expressaram semblantes mais aliviados. Não era uma Pessoa. Que alívio! Era um indigente. Apenas mais um miserável que cruzou o caminho daquela gente nos seus momentos felizes, atrapalhando o fluir da noite. Era apenas um problema que seria resolvido, o mais breve possível. Era só mais um temporal que surgia abruptamente no céu, em um domingo de praia, numa noite de luar regada a chopes, em bares sofisticados; um temporal a ser evitado. Maciel morreu invisível aos olhos das Pessoas, aos olhos do Estado. Foi morto pela irresponsabilidade, assassinado pela indiferença daquelas, declaradamente, “Pessoas”.

 

Conto publicado na revista Caxangá, V. 3, N.1, 2021, editada por Ana Luíza Drummond, Jorge de Freitas e Ranielle Menezes de Figueiredo.

Link da revista: https://revistacaxanga.files.wordpress.com/2021/07/caxanga-v3-n1.pdf

Imagem de 3centista por Pixabay 


Cigana de Olhar Enluarado

à Val

 

Feiticeira em noites de lua cheia,

Bruxa, semeadora de luz,

Anjo sem asas que habita corações banhados em amor,

olhar de Mulher sedutora,

Cigana de olhar enluarado,

encantadora.

 

Conversa envolvente,

ora conquistadora,

ora redentora de almas aflitas;

ora amante,

ora espírito sábio guiando sofredores para longe de seus infortúnios.

 

Cigana de olhar enluarado,

codinome Amor,

andar envolvente,

voz de Sereia em mares calmos,

corpo embebido em paixão,

sedução.

 

Anjo sem asas,

reflexo divino em sorrisos de esperança,

lágrimas de alívio em faces desoladas,

brilho da esfera etérea,

caminha entre humanos,

sublimemente amparada por seres celestiais.

 

Cigana de olhar enluarado,

lábios vermelho-flor,

mãos que gesticulam encantos,

voz que ressoa amor.

Sabedoria de almas milenares,

inquietude de espírito curioso

à bater nas portas de mentes alheias,

desvendando mistérios

e resgatando existências perdidas em vivências incompreensíveis.

 

Feiticeira em noites de lua cheia,

Bruxa que semeia a aurora,

Anjo sem asas,

Deusa em carruagem de estrelas,

Cigana de olhar enluarado,

harmonia do universo,

arco-íris de palavras.

 

Poema publicado na revista LiteraLivre, V.5, N.27, 2021, editada por Ana Rosenrot.

Link da revista: https://drive.google.com/file/d/1iC5r0e0noWjnN_K_w1cfs8qtMaUvEwcl/view

Imagem de  Myriam  Dreamer por Pixabay 


Indiferente

Destino utópico

sonhado em vão,

pensamentos algemados

em vidas fechadas,

condenadas à solidão.

Rotina delirante,

susto com a visita inesperada,

dinâmica interrompida

pela risada debochada.

Corpo em desconforto,

desejo de escapulir

pelas frestas do pseudo-humor,

indigesto.

 

Pseudo-humor que satisfaz a vulgaridade

e a ausência de obviedade

nas falas alucinadas

de pessoas dopadas

pela superficialidade de desejos miseráveis,

desconectados da dura realidade

de vidas impactadas

pela morte da dignidade.

 

Risadas cheias de trivialidades,

sorrisos infames,

fardo da solidão interrompida

pela alcateia faminta

por vidas mendicantes

e por esperanças estraçalhadas.

 

Muros que separam

as risadas sórdidas,

regadas a vinho importado,

de olhares cheios de luto

e tantos sonhos

jamais alcançados.

 

A agonia da solidão é venturosa,

apenas por não ter que dividir os espaços

com os abutres da humanidade,

lobos devoradores da sagrada dignidade,

semeadores de dor,

ceifadores de tantas vidas

barganhadas pelo aumento

de suas contas bancárias.

 

Devolvam-lhe a vida solitária!

Presa na sua rotina delirante,

escravizada pela sua indiferença,

pérola no mar de desigualdades,

convicta em não tomar nenhum lado,

imaculada em seu território sagrado,

prisioneira do medo,

pássaro de asas amputadas,

mais cedo ou mais tarde,

devorado pela alcateia de lobos.

 

Poema publicado na revista LiteraLivre, V.4, N.23, 2020, editada por Ana Rosenrot.

Link da revista: https://drive.google.com/file/d/1vs0qmEiAfDX-eCihGLzJ3Q7bgwwtzN-W/view

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay 


Renúncia

Tentei atenuar o ruído das divagações

que faziam barulho na minha mente,

que saudavam o ilógico

como algo coerente.

 

Relutei em abnegar as palavras

distorcidas e mal interpretadas,

atiradas em alvos predeterminados

feito balas de borracha.

 

Dissipei a imensidão do sentimento

nas nuvens disformes,

em imagens sem sentidos

e em representações desconexas

numa realidade delirada.

 

Queimei as cartas que rogavam pedidos de desculpas.

Apaguei as velas

que tremeluziam na sala escura

e sai ao vento,

pelas veredas do meu pensamento.

 

Poema publicado na Coletânea Enluaradas “Se Essa Lua Fosse Nossa”, organizada por Marta Cortesão e Patrícia Cacau, 2021.

Imagem de LEEROY Agency por Pixabay