Corpo desmembrado da realidade espelho,
o reflexo é o dinheiro,
sangue seco entre os dedos,
pés descalços, cansados
de estradas construídas
por sistemas que semeiam aporofobia.
Deitado na calçada do estacionamento
cheio de carros importados
de gente grã-fina e sorridente,
permanece o corpo,
morto em vida,
desalinhado do destino desejado,
traçado em sonhos não sonhados,
avulso, desencantado,
encarcerado na sua invisibilidade coletiva.
Corre, desesperada,
pelas ruas do centro da cidade,
a mulher perseguida por homens
moralmente encarniçados,
sexualmente recalcados,
violência é o sobrenome
dessa turba odienta.
Morta a pauladas
por Transgredir as regras do patriarcado.
Corpo rebelde,
viola as leis sádicas de uma sociedade doente,
acorrentada a padrões embrutecidos
de convivência.
Corpo jogado numa vala,
o batom vermelho ainda colore os lábios
do sorriso ceifado pelas mãos armadas
do macho rejeitado.
Ele foi seu primeiro namorado,
recusado, fez-se vingado,
roubando a vida de mais uma
nas estatísticas de feminicídio.
Crime que já foi chamado de honra,
que vergonha!
tornou-se, perante a lei, penalizado.
A sociedade, aos poucos, desperta
do seu pesadelo naturalizado.
Não é não!
E que fique bem claro:
Basta, patriarcado!
Corpos fugidos de guerras,
oriundos de países lançados às trevas,
esgotados de morte e miséria,
sem pátria,
desaventurados,
acostumados a fugir da desumanidade.
Empatia ou xenofobia?
Depende do fenótipo e da origem do imigrante,
os corpos são julgados pelos olhares impregnados de valores excludentes.
O tratamento com dignidade é oferecido a quem se encaixa no padrão da branquitude ocidentalizada.
Corpos torturados e mortificados,
pisoteados pelo Estado,
bota no pescoço,
fuzil na mão e o sorriso sádico.
Corpos baleados,
em sua maioria,
pretos e pardos.
Corpos algemados,
subjugados,
marginalizados,
respiram com sufoco
o ar que quase falta.
Corpos sacrificados
pelas crenças num Deus inventado,
a bíblia vira arma
no púlpito dos falsos profetas,
ovelhas carniceiras,
lobos em peles de cordeiros,
à espera do rebanho desorientado.
Corpos invisibilizados,
desumanizados,
tratados como indigentes.
Corpos avulsos,
não pertencentes,
expulsos da sociedade,
odiados pelas gentes,
estigmatizados em sua expressividade,
encarcerados pela sua natureza.
Corpos desobedientes,
armados de seus desejos potentes,
agarram-se com unhas e dentes
à possibilidade de trilhar outras estradas,
longe da perpetuação da iniquidade,
disfarçada de normalidade,
perpetrada pelas gentes sádicas
nos bastidores de uma vida de horrores.
Poema publicado nos Cadernos Marginais, v. 03, "Corpos que Morrem", Editora Fi, outubro de 2023, organizado por Felipe Rodolfo de Carvalho e Cecília de Castro Algayer.
Link: https://drive.google.com/file/d/1HeuT3L8gidshY0WWUQkDn_tYoUKneA8L/view?pli=1
