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quinta-feira, 31 de março de 2022

A Carta






Com os pés calejados de caminhar à sua procura,

encontrei abrigo num sobrado escuro,

abandonado pelos antigos donos,

serviu-me de moradia

por 7 noites e 7 dias.

As portas de madeira escurecidas pelo tempo,

abandonadas às traças,

me faziam recordar as minhas desgraças,

situações de infortúnios,

declínios.

Dias e noites naquele sobrado,

dominado pelo silêncio,

impregnado de histórias

que retumbavam na minha memória.

Nos degraus das escadas que levavam ao andar superior

haviam duas iniciais de nomes riscados no assoalho de madeira,

por incrível coincidência, eram as mesmas letras dos nossos nomes,

escritos na noite derradeira.

Na última noite, antes de continuar a seguir seus rastros,

ouvi passos,

vinham do andar abaixo.

Hesitei em descer as escadas,

podia ser que minha percepção estivesse errada.

Em estado de alerta,

desci lentamente, degrau por degrau

e encontrei uma carta,

colocada por baixo da porta,

de modo não acidental.

A carta,

endereçada à antiga moradora,

datava de agosto de 2011,

por ora,

fez-me espectadora

de uma história

da qual eu também era a protagonista.

Do meu ponto de vista,

estava desconfiada,

mas a intuição me impelia

a abri-la.

Hesitei,

visto que a data estava errada.

A curiosidade me consumiu por alguns minutos,

já que o nome da destinatária era igual ao meu,

mas não havendo para quem entregar a carta,

o interesse venceu.

Lá estava uma pequena mensagem que dizia:

Aqui, na rua da Lamentação,

eu ainda espero o teu perdão!

Joguei a carta no chão,

assustada com tamanha coincidência,

minhas mãos tremiam,

intuitivamente,

eu sabia que a mensagem era para mim,

tim-tim por tim-tim.

Dobrei a carta e coloquei no bolso,

arrumei as minhas coisas e decidi ir embora,

depois de um trabalho dispendioso,

aparentemente sem sucesso,

a tristeza consumia o meu regresso,

em todo o seu desgosto.

No meio do caminho encontrei uma senhora

com traços faciais semelhantes aos meus,

indicou-me um ponto de ônibus,

para a surpresa dos meus olhos ateus.

Quando desembarquei na cidade,

já era madrugada,

olhei a data no celular pela última vez.

Precisava me certificar que estava no ano de 2010.

Peguei um táxi e fui para casa,

dormi e acordei renovada,

porém, triste por não ter encontrado

o motivo de toda a minha jornada.

Todas as noites nas arestas do meu pensamento,

eu espiava os seus sonhos,

em silêncio.

Quando um ano se passou,

tive que me mudar da casa onde eu morava,

o acaso me levou para a cidade onde te conheci,

o mesmo lugar,

onde ainda havia um sobrado para alugar.

O antigo morador havia pintado com cores claras,

e a estrutura estava toda restaurada.

A vivacidade que transbordava daquele sobrado

me fazia recordar

os dias em que eu fora feliz ao seu lado.

Mudei-me para lá.

Meses se passaram

e em uma certa viagem,

eu voltei a te encontrar,

você estava linda e irradiava alegria,

porém, havia um certo pesar em sua fisionomia.

Conversamos e você me disse estar arrependida,

olhou nos meus olhos e disse que queria voltar.

Hesitei firmemente,

não havia te perdoado,

mas amando-te loucamente,

decidi te aceitar.

Meses se passaram e, certa vez, você teve que viajar,

disse que demoraria quase dois meses para retornar,

até que numa manhã de setembro,

uma carta com remetente não identificado me foi entregue pelo correio.

Sentei no sofá com estranhamento

e com uma curiosidade angustiante,

ansiosamente

comecei a abri-la,

visto que me lembrei que era a mesma carta que eu já havia lido.

Corri para o quarto,

abri a gaveta do armário,

a carta havia sumido.

Surpresa com o fato,

olhei para os lados,

atordoada,

à procura de uma explicação,

para a justaposição

do tempo.

A carta trazia a mesma mensagem que dizia:

Aqui, na rua da Lamentação,

eu ainda espero o teu perdão!

Horas se passaram,

um policial bateu à minha porta,

a tristeza adentrava meu peito,

vinda lá de fora,

sincronicamente

acontecia um acidente

envolvendo dois carros.

Meus olhos encheram de lágrimas,

rasgando meu rosto,

a jorrar.

Intuitivamente eu sabia que você não iria mais voltar.

Poema publicado na Revista LiteraLivre, N.6, V.32, p. 128-132, 2022.

Link da revista:  https://drive.google.com/file/d/1G3VbQg7s19peE-PweF0EsaN7FZO9JfIB/view

Imagem de Pezibear por Pixabay.

segunda-feira, 21 de março de 2022

Estorvo


As mãos vazias, 

olhava dos lados,

procurava por algo,

inalcançável.


Sorria desesperado,

gesticulava afobado,

andava poucos metros,

impaciente,

ansioso por ser reconhecido

como gente.


“A gente” o ignorava,

era um filho do nada,

no máximo um corpo

que atrapalhava

o caminhar “das gentes”

 apressadas.


Estorvo!

Um grito solitário,

 vindo de dentro de um carro,

representa o coletivo

que emudece,

partilhando do mesmo projeto

de apagamento de vidas

carecidas

de dignidade.


Voz desalmada,

odiosa e sádica,

condena o desconhecido

ao ostracismo social,

revelando a face

de uma sociedade brutal.


Algumas vozes,

em comum acordo,

protestam em defesa do Estorvo,

que esfrega na cara do sistema,

a cada segundo,

a sua decadência moral,

traços de uma sociedade bestial.


Estorvo, ele repetia para si mesmo

como se fosse a lição do dia,

mais uma vinda da meritocracia

e da demagogia que domina o Estado,

aparelhado

pelo movimento de inflexão da democracia.


Estorvo virou apelido

entre os comparsas da rua,

de almas nuas

e corpos invisíveis,

intocáveis,

todos resultados

do descaso aos excluídos,

àqueles que não tiveram a chance

de serem os indicados

em esferas corrompidas,

suprimidas

de qualquer honestidade.


Estorvo!

grita a sociedade,

tampando os olhos

para a realidade.


O Estorvo incomoda,

mostra a hipocrisia

da sociedade doentia

que idolatra o Cristo,

mas ignora o seu legado.


Lá vai o Estorvo,

lutando contra si

para ser reconhecido,

duelando contra o mundo,

resistindo

para não ser atropelado

pelas vozes uníssonas

que o julgam condenável,

aprisionando-o na marginalidade.


Estorvo,

incômodo social,

obstáculo que atravanca 

o que é considerado normal.

Tapa na cara da sociedade cruel,

que projeta no Estorvo

a sua face escondida,

duelando contra a realidade,

através de sua dissonância cognitiva.


Quem é o Estorvo, afinal?


Poema publicado na Revista Fluxos - Blog Aliteração, v. 3, n. 7, 2022.

Link da Revista:https://pt.calameo.com/read/006354378f277e77a3f1d

Imagem de Ben_Kerckx por Pixabay

sábado, 19 de março de 2022

O Dia Que Não Deixou Saudade


Poema "O Dia Que Não Deixou Saudade", declamado por Joyce Nascimento no Literatura Já, canal no YouTube.

terça-feira, 15 de março de 2022

Cheiro de Felicidade

    
À Vanessa

Lábios com contorno da lua, 
olhar abstraído pelo infinito,
perdido na saudade de histórias delineadas pelo acaso.

Simplicidade no sorriso cálido, 
mãos que desenham sentimentos 
em toques suaves feito pétalas de rosas.

Corpo feito água de cachoeira, 
delicadamente forte como o jorrar das águas, exalando o frescor peculiar de natureza sutil,
a fluir intensamente no vibrar da vida, 
marcando caminhos e encantando destinos
 com a sua inigualável presença.

Alma sensível que pressente ausências ainda não anunciadas, 
coração que veleja em mares calmos e tempestuosos, 
à procura de abrigo em noites de chuva, 
exalando o perfume da alegria em dias de sol.

Cheiro de felicidade ao amanhecer, 
aroma da sensualidade ao cair da noite, 
luz que se atreve a roubar o protagonismo das estrelas em noites de luar, 
esperança de amor eterno suplicado nos sussurros de vozes em preces solitárias.

Essência de amor transmutado em murmúrios que se misturam ao som de harpas celestiais, 
voz que afaga corações desesperados, 
aflitos e desencontrados 
em destinos áridos, de sonhos abandonados. 
Olhar de nuvem que risca histórias no céu azul sonhado, 
cantiga divina a ninar esperanças 
construídas por mãos entrelaçadas.

Poema publicado na Revista Ecos da Palavra, n. 9, 2022.
Link da Revista:

Imagem de Photosforyou por Pixabay